quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Roy o Tripé

Quando embarquei no N/M Cabo Verde em 1979 tive a surpresa de saber que havia dois tripulantes extra-lotação, o Roy e a Nicha. Dois rafeiros que eram a mascote do navio. Eram realmente outros tempos pois hoje já não seria possível com as restrições todas.
A Nicha era uma cadela pequena, chouriçoide de pata curta. Era um bicho que devia pouco á beleza mas era muito simpática, era muito velha quando a conheci e também era uma cadela cega, talvez devido a diabetes pois o pessoal passava a vida a dar-lhe rebuçados e outras guloseimas, ela era muito gulosa.
O Roy era um cão, de raça Street Dog, apuradíssima e que, como todos os cães dessa raça era espertíssimo, o raio do bicho era mesmo engraçado e o pessoal todo tinha um carinho muito especial por ele. O Roy tinha a alcunha de O Tripé pois não tinha uma das patas dianteiras, tinha-a perdido num acidente no cais, atropelado acho eu.
Uma das cenas engraçadas do Roy é que ele embirrava um bocado com um chefe de máquinas e então mijava-lhe no tapete á entrada do camarote, era o único tapete em que ele fazia as suas necessidades, fora isso era bastante limpo, ia sempre para o convés. Nunca me hei-de esquecer o dia em que o Roy foi apanhado pelo chefe de máquinas em flagrante delito e fugia nas suas três patas sendo perseguido por um tapete voador atirado por um irado chefe. Eu quase que juro que o cão se ia a rir, a boca arrepanhada para trás como se estivesse a rir. Ainda hoje visualizo a cena e me dá vontade de rir.
Outra das cenas típicas do Roy era a chegada do navio ao cais de Stª Apolónia, ladrava desalmadamente com a cabeça enfiada numa buzina para um cão que estava no cais, cão esse que fiquei a saber era o irmão, até eram parecidos, pelo escuro quase preto e altura mediana. A escada era baixada e lá saia o Roy a correr nas suas três patas e ia cumprimentar o irmão. Depois das cheiradas de rabo da praxe lá ia ele passear para o cais. Era sempre o primeiro a sair e o último a entrar.
Em S. Vicente, Cabo Verde, era a mesma coisa, saía a correr e ia ter com uma cadela que andava lá pelo cais e era então ver as tentativas desesperadas que o Roy fazia para cobrir a cadela, a falta da quarta pata fazia-se sentir pois acabava por escorregar sempre. A cadela já o conhecia pois já nem lhe rosnava, abanava-se um bocado e o desgraçado escorregava. Havia sempre pessoal no convés a incentivar o Roy a continuar as suas investidas. Depois dessas tentativas ele desaparecia terra adentro, o que ia fazer nunca soube mas sabia sempre o dia e a hora de saída, como não sei. Um dia atrasou-se e o comandante quando perguntou se estavam todos a bordo a resposta que recebeu é que faltava o cão, ele mandou apitar para o chamar. Esperou-se uma hora quando finalmente se viu o cão a correr desalmadamente cais fora e entrar esbaforido navio adentro, já no convés deixou-se cair extenuado. A escada foi recolhida e o navio seguiu viagem. Mais tarde contaram-me que uma vez ele faltou á saída ali mesmo em S. Vicente e o navio teve que seguir viagem, passados os 40 dias da volta quando o navio atracou lá estava o Roy no cais á espera, magro que nem um cão, entrou e foi-se deitar no seu sítio.
Numa dessas paragens em S. Vicente a Nicha desapareceu, julga-se que tenha caído á água devido á sua cegueira, esperou-se e procurou-se por todo o lado e nunca mais se viu rasto dela.
Uma tarde estava eu de serviço no cais de Stª Apolónia quando nos apareceu um estivador com o Roy nos braços, o homem quase que chorava e só dizia que não o tinha visto. Estava a conduzir um forklift quando fez marcha atrás e atropelou o Roy, matando-o. Ficámos todos a olhar para o pobre bicho, morto no convés, estávamos todos muito tristes, o cão era nosso companheiro.  Depois de muito discutir o que se faria com o corpo tomei a decisão de arranjar um saco, pu-lo lá dentro e lastrei aquilo tudo com uma válvula velha e atirei ao mar. Um marinheiro tem direito a um enterro de marinheiro, o Roy está sepultado na doca da extinta CNN em Stª Apolónia. Roy o Tripé

Jimmy the Sailor

Publicado no SOL na quinta-feira, 4 de Dezembro de 2008 17:28

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