quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Cenas de embarques - Luanda 1982

Tinha acabado de chegar a Luanda, embarcado no Joaquim kapango, navio da companhia Angonave. Estava embarcado nesse navio sob um acordo de cooperação entre a extinta CNN (Companhia Nacional de Navegação) e o governo angolano.
Estava matriculado como terceiro maquinista e ainda era um jovem na profissão, era apenas o meu quarto embarque e embora sendo oriundo de Moçambique nunca tinha estado em Luanda ou qualquer lugar em Angola.
Naqueles tempos as comunicações faziam-se via rádio, telegrama ou a simples carta. Falar para casa era caro e desconfortável, a partir do navio era via rádio e apenas num sentido, ou seja, ora falo eu ora falas tu:
- Estás boa amore?? Escuto!
- Estás aonde querido? Escuto!
- Estou a navegar em direcção a Luanda! Escuto!
……
E assim se desenrolava uma conversa animadíssima com o radiotécnico ao lado para manter as coisas a trabalharem bem.
Por isso quando se chegava a terra ia-se muitas vezes a correr aos correios fazer chamadas telefónicas para se falar com a cara-metade ou com as namoradas. Aproveitava-se para se matar umas saudades.

Chegado a Luanda não pude sair imediatamente porque fiquei de serviço á chegada, coisa bastante enervante pois a vontade de pôr o pé em terra após 15 dias de navegação é muito grande. Só queremos sair, beber uma cervejola e ver umas miúdas, lavar a vista com se diz ou ganhar um bocado de sanidade.
Como ia sair no dia seguinte, logo ás 8 da manhã perguntei a quem já conhecia onde ficavam os correios pois queria falar para casa, queria notícias e queria ouvir a voz da minha mulher. Foi-me explicado muito detalhadamente o caminho para os Correios. Ia pela bonita marginal de Luanda, chegava quase ao fim virava junto ao posto da polícia, andava mais um bocado e veria o edifício dos Correios, não podia falhar.

No dia seguinte, mal fui rendido saltei para o cais e em passo acelerado lá fui fazer o percurso para a tão ambicionada chamada.
Ia tão vidrado na antecipação do prazer que ia ter em ouvir a voz da minha mulher, em saber novidades que realmente não tenho ideia de ter feito a marginal, não a vi sequer.
Avistei a esquadra da polícia, segui pelo passeio e ao passar pelas sentinelas fiz e cumpri uma regra internacional, afastei-me para a beira do passeio e passei á frente dos polícias (que mais pareciam soldados), a uma boa distancia deles mas ainda no passeio. Essa parte lembro-me perfeitamente pois naqueles lugares todo o cuidado era pouco.
E continuei a andar começando no entanto a ouvir gritar: “Camarada!...Camarada!...”
Aquele chamamento incomodou-me pois era insistente mas como já tinha avistado os Correios nem parei. Os gritos continuaram e eu a pensar para comigo:
- Bolas, é a primeira vez que venho a Luanda, não conheço cá ninguém,… não é para mim de certeza…”
E continuei a andar em passo apressado até que ouvi um ruído que me fez estacar e olhar. Um claque-claque bem característico, uma bala tinha sido posta na câmara de uma arma.
Estaquei e olhei para trás. Não queria acreditar no que estava a ver. Um soldado apontava-me a Kalashnikov ás costa. Tinha-a engatilhado, o ruído que eu tinha ouvido, e estava a apontar-me ás costas preparando-se para fazer fogo.
É preciso não esquecer que em Luanda tinham muito recentemente morto um cidadão do Leste, checoslovaco se não estou em erro porque não tinha parado e feito continência á bandeira, tinham morto um cidadão português por um motivo bastante fútil também do género.
E eu estava aparvalhado a olhar para aquele indivíduo que me apontava uma arma e preparando-se para disparar, não queria mesmo acreditar até que me deu uma fúria enorme e gritei:
- O que é essa merda?? Porque estás a apontar a arma? E comecei a avançar em direcção ao soldado. Estava furioso e essa fúria fez-me reagir sem considerar o perigo da situação, o soldado podia apenas apertar o gatilho, outros já o tinham feito.
Não sei o que se passou pela cabeça do homem mas ele para refilar comigo teve que baixar a “kalash” não disparando ou perdendo a oportunidade de o fazer. Começou então a dizer qualquer coisa que eu não percebi inicialmente, mas que ao fim de uma data de berros fiquei a conhecer o meu crime.
Quando passei em frente aos soldados pisei um risco branco marcado no chão que tal era a porcaria que nem se via. Era proibido pisar esse risco.
Com a arma em baixo mas sempre virada para mim obrigou-me a voltar atrás e a refazer todo o percurso mas dessa vez contornando o tal risco, apenas um desvio de 1 metro.
E lá segui o meu caminho a arder em fúria por tão grande estupidez.
Cheguei aos correios e depois de falar para casa já estava tudo atirado para de trás das costas, já era tarde e tinha que regressar ao navio….

Jimmy, Lisboa 3 de Agosto de 2008

Publicado no SOL no domingo, 3 de Agosto de 2008 11:25

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