A cena passou-se mais uma vez durante o meu embarque no navio Joaquim Kapango da Angonave no ano de 1983, estávamos fundeados desta vez ao largo de Santos no Brasil.
Tínhamos feito a travessia Luanda, Santos e estávamos ao largo esperando por cais. De momento não me lembro qual o mês em que isto se passou mas segundo as minhas memórias o tempo estava como sempre, quente e húmido. Não havia sinais de tempestade no horizonte.
Ficámos cerca de 3 dias ao largo vendo os paraísos brasileiros por binóculos e ansiando por pôr os pés em terra para beber um copo em terra numa esplanada. Já tínhamos sido visitados por uma lancha carregada de animadoras sociais mas o nosso comandante não autorizou que houvesse intercâmbio cultural e por isso a lancha não chegou a encostar ao navio e tudo não passou de umas graçolas gritadas do alto da amura para as moçoilas que nos acenavam e nos prometiam o céu e a terra, se calhar mais o céu… Na altura presumo que se tenha rosnado um bocado contra esta atitude tão arbitrária do nosso comandante mas eu ressalvo que embora eu também não tivesse concordado tinha e tenho o comandante em grande estima, pessoal e profissionalmente.
E assim estávamos pachorrentamente á espera de atracar quando numa das noites, que também não posso precisar, estávamos a seguir já o sistema de serviços na máquina o que significava 24 horas de serviço, 24 h de descanso. O sistema era dividido entre o 3ºmaquinista, eu e o 2º maquinista. O nosso 1º maquinista em porto corria o serviço de 8 horas.
Nessa noite era a minha vez de estar a fazer as tais 24 horas o que significava que estaria de pé e em atenção até ás 3 ou 4 da manhã e depois iria deitar-me deixando o ajudante de motorista de vigilância aos equipamentos com instruções de acordar-me sempre que necessário.
Já tinha adormecido apesar da minha insónia constante quando me entra o ajudante pelo camarote a gritar que o comandante queria a máquina com urgência.
Dito e feito, saltei da cama e saí a correr assim como estava, descalço e em cuecas dirigindo-me para a casa da máquina. Ia entretanto gritando instruções ao ajudante para carregar garrafas e outras tarefas que ele sabia e era usual fazer. De caminho ía abrindo válvulas de ar e arrancando com bombas de combustível e lubrificação. Quando cheguei ao controlo da máquina principal estava já o telégrafo a retinir ordens de emergência vinda da ponte. Imediatamente fiz um arranque á máquina principal, deixei-a na velocidade pretendida e fui a correr lançar um 2º gerador, tinha que o fazer pois apenas com um e já em esforço o perigo de blackout era real.
Estabilizada a instalação, com energia suficiente para a amarra, máquina a trabalhar o passo seguinte foi de chamar o chefe pois também teria que tomar conhecimento da situação.
Manobrou-se mais um pouco, parou-se e voltou tudo á posição inicial.
Entretanto tinha interrogado ajudante pois continuava a não saber o que se tinha passado e originado essa emergência. O ajudante, era o Vata, disse-me que á noite tinha começado a chover e que devido a isso estava a entrar água pelos albóios (janelas no topo da casa da máquina para ventilação). Então ele foi lá acima ao piso da ponte para fechá-los e quando descia, em vez de vir pelo exterior por causa da chuva decidiu vir pelo interior. Quando passou pelo camarote do comandante este vinha a sair esbaforido e que, quando o viu, lhe gritou que me chamasse com urgência. O ajudante Vata (para mim o melhor do grupo) foi sensível á urgência do comandante e actuou com rapidez.
Falando no dia seguinte com o comandante que digamos que estava num estado de muita má disposição soube o que tinha acontecido. Tinha caído uma daquelas tempestades tropicais muito rápidas e extremamente violentas. Ele acordou com um trovão e relâmpago e quando olhou para a vigia viu o morro a aproximar-se com uma certa velocidade. O navio tinha garrado (ia com a corrente arrastando a âncora) e ia-mos bater num promontório em rocha o que causaria o nosso naufrágio.
Na ponte estava de serviço o praticante de piloto, rapaz angolano com o curso tirado em Cuba e um marinheiro mais velho. O praticante quis chamar o imediato mas o marinheiro opôs-se e como era mais velho levou a sua avante, problemas que o povo angolano tem de ultrapassar, o síndroma do “mais velho”. O serviço era do imediato que se tinha ido deitar e confiado no praticante e no marinheiro e também porque nunca esperou que o tempo mudasse assim. Digamos que levou bastante na cabeça, o comandante estava fora de si, já tinha tido um acidente semelhante com fatalidades.
No dia seguinte vimos a parede rocha que íamos batendo e então realizámos a sorte que tínhamos tido na noite anterior, ficámos a escassos metros do naufrágio.
Felizmente tudo correu bem e acabou bem. Logo atracámos e tudo foi esquecido pois havia muita acção de intercâmbio cultural a realizar, estávamos no Brasil … Não olhem para mim que eu fui a coisinha mais burra que existiu nessa viagem… aliás fui o único burro dessa viagem …
O comandante levou três dias a recuperar a sua boa disposição. Fica aqui uma homenagem a esse senhor com quem foi bastante agradável navegar.
Jimmy the Sailor
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Uma gaivota disse: